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  • Tiago Amaral

“O mundo das crianças”


Domingo de manhã, 9 horas e pouco. Mais de meia Lisboa ainda dorme...


Acionamento da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER - médico e enfermeiro) para paragem cardio-respiratória de um homem de meia idade. Por razões éticas e deontológicas, não irei esmiuçar a vertente clínica em redor do caso. Apenas vos dou a conhecer o desenlace que acaba por ser o trigger desta história: foi verificado o óbito do senhor no local.


A esposa, desesperada, sem que nós tivéssemos tempo de a aconselhar, corre para o quarto ao lado onde dormia S. A criança de 10 anos acorda em pânico e diz que o pai “deve ter caído”, que “não morreu”.


No pequeno quarto do S., um barulho ensurdecedor cai sobre a equipa da VMER e da Ambulância de Emergência Médica (AEM - teph) do INEM. Abraçado à mãe, o pequeno S. chora.


Com o desenrolar da situação, e após alguns minutos, a senhora ausenta-se, com o médico e um dos teph, para ir buscar a identificação do falecido.


No quarto fico eu, o Carlos (outro teph) e o pequeno S. A criança começa a chorar de novo... Abraço o pequeno... ele diz que já é a segunda vez que acontece... (soluça... silêncio... olha para nós). Refere que há 2 anos atrás o periquito, já velhinho, também lhe morreu.


De repente fixa-me nos olhos e pergunta-me se o pai pode ser salvo se eu fizer "respiração boca-a-boca". Olho-o nos olhos, aperto-lhe a mão e respondo-lhe que o coração parou e que a respiração boca-a-boca já não faz o coração bater pois passou muito tempo; e o coração ao final de algum tempo não tem forças para começar a bater mesmo nós dando-lhe uma ajuda.


Pergunto-lhe se tem algum animal de estimação atualmente. Diz: "tenho uma porquinha da Índia". Pergunto-lhe o nome e diz que se chama "Paulinha". Foi comprada pelos pais aquando do aniversário. Então e quando fazes anos?, pergunto. Já fiz! Então e para o ano não fazes de novo? O S. sorri... "sim!"


"Então e o que ias fazer hoje", pergunto. "Acordava, comia o pequeno-almoço, tomava banho e estudava. Depois de estudar ía jogar PS4", remata o S..

O Carlos pergunta de imediato: "qual é o jogo que jogas na consola? Jogas Fortnite?". "Sim", responde o pequeno S..

Perguntámos quanto tempo ele joga e diz que "1 hora por dia". Joga com os amigos. Eu, que sou um info excluído em jogos (confesso que já tinha ouvido falar deste mas nunca tive curiosidade em ver do que se tratava) peço-lhe para me contar tudo sobre o Fortnite. E de repente vemos o sorriso do S. abstraído da tristeza que se passa à sua volta. Dentro da sua bolha, conta com paixão e empenho todos os pormenores do jogo.


Entretanto chega a UMIPE (Unidade Móvel de Intervenção Psicológica de Emergência) e apresentamos a Psicóloga Z. ao pequeno S. Despeço-me dele com um abraço e uma festa na cabeça e digo-lhe que temos de ir. Pergunta porquê. Digo-lhe que temos de ir ter com outra pessoas que podem estar a precisar de nós. Pergunta se há muitas pessoas que nos ligam. Digo-lhe que sim. Ele parece compreender. Pergunta-me o nome. Levanto-me e aceno com a mão um adeus...

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